(Extraido da Aliança Evangélica Portuguesa)
A vida tem o seu jeito de nos levar a reflectir sobre ela, seja pela nossa própria personalidade, as circunstâncias pelas quais passamos ou as pessoas com quem nos cruzamos. Essa reflexão pode, no sentido positivo, ajudar-nos a orientar ou a focar de novo a nossa existência, tal qual uma bússola.
Nos últimos anos, e talvez influenciada pelo facto de ter passado a barreira dos 50 e ter consciência que não viverei neste planeta tantos anos como aqueles que já tive oportunidade de viver até aqui, tenho reflectido sobre o que é que se resume a vida. O que é essencial, sem o qual não é possível viver, no seu sentido mais significativo e profundo?
Cada um de nós responde de forma pessoal a essa pergunta e a minha resposta é a de que o fundamento da minha existência é inquestionavelmente Deus. Não me estou a referir a um conceito abstracto ou a um Deus distante, ditador, carrancudo, mas a Alguém que é relacional por natureza, está próximo e continua envolvido com a Sua própria criação (tanto quanto esta Lhe permite) capacitando os relacionamentos não somente com a Divindade, mas também entre as criaturas. É este Deus que me leva a pensar, talvez de forma simplista que a vida – a vida que Ele desejou/deseja para a Sua criação (humana e não-humana) – é um entrelaçado de relacionamentos.
É certamente a minha crença nesse Deus que fundamenta a minha convicção que os seres humanos desfrutam de relacionamentos construtivos quando estes são imersos na vivência contínua do amor de Deus. É deste amor que fluem o compromisso, a confiança e o perdão, que são componentes importantes em qualquer relacionamento. O próprio Jesus – Deus na forma humana e a personificação daquilo que é ser-se humano – afirmou sobre o que é mais importante: “Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças; e ama o teu próximo como a ti mesmo”. (Mar. 12:30-31, BT09). Amor – este tipo de amor que vem de Deus, aceite por mim e que enche a minha vida – é o que caracteriza os meus relacionamentos com Deus, outros e a mim mesma.
A cada pausa na música (para os amantes desta linguagem universal) ou da história (para os apreciadores de enredos) da vida maravilho-me pela percepção, mesmo que ténue, de que o relacionamento maior de amor – aquele com Deus – foi iniciado por Ele e continua a ser cultivado por Ele diariamente. Enternece-me saber que sou amada – sou filha amada de Deus! Esse amor não depende do que eu faça ou deixe de fazer, embora compreenda na minha mente finita, que os meus pensamentos, palavras e acções, ou a falta deles, alegram ou entristecem o coração do meu Amado. Como não amar este Deus que me conduz com amor (Oseias 11:4, OL) do princípio ao fim dos meus dias e para além deles? É esta imensidão e certeza de amor, que prefere morrer (como aconteceu na pessoa de Jesus) do que perder a oportunidade de se relacionar comigo/connosco, que me leva a amá-l’O de volta e fundamenta os relacionamentos com a Sua criação, a começar com as pessoas.
Quando a minha identidade está alicerçada nesse amor divino percebo que o outro é igualmente e unicamente amado por Deus. Não é o facto de nos darmos bem ou de ‘irmos com a cara do outro’ que firma os relacionamentos entre humanos, mas é sim a afinidade de sermos filhos/filhas do mesmo Pai, mesmo que alguns não reconheçam e consequentemente não vivam essa filiação. Quando percebemos/vivemos esta verdade, as lutas baseadas no amor ao poder, sejam em que dimensões ou níveis forem, tornam-se pelo contrário em oportunidades de observar e actuar no poder do amor. É este poder/dínamo que transforma os estranhos em conhecidos, os conhecidos em amigos e os amigos em irmãos.
Não há muito tempo fui levada a pensar no relacionamento com outros numa outra perspectiva ao ler o pensamento de Juliana de Norwich (que viveu durante a primeira e segunda vagas da Peste Negra e cuja experiência de vida tem algo a dizer acerca do sofrimento). Ela referiu que o verdadeiro bem-estar nas nossas vidas é encontrado em relacionamento. Por outras palavras, o bem-estar em todas as dimensões (física, mental, espiritual, social) da pessoa humana revela-se intrinsecamente ligado ao ser-se transformado no melhor ser humano possível, o que é concretizado através do relacionamento com os outros. O que me leva de volta às palavras de Jesus: ‘ama a Deus com todo o teu ser, e ao teu semelhante como a ti mesmo’.
Em tempos idos, o amor a mim mesma era indubitavelmente associado ao egoísmo, cujo conceito e vivência sempre foram considerados errados, e sobretudo num contexto de colocar os outros sempre em primeiro lugar. Como então compreender a vida, no seu desígnio divino, no que respeita ao amor por mim mesma, já que este parece estar ligado ao amor pelo outro? Devo confessar que esta tem sido (continua a ser) uma jornada de desconstrução e reconstrução de ideias e concepções em mim arraigadas. A maneira de hoje olhar e viver esse amor a mim mesma, sem roçar o egoísmo, é colocar no centro (de novo) o amor de Deus. Dizendo de outra maneira: é amar-me através dos olhos de Deus – o que por si só é um exercício só possível pelo modelo de vida encontrado em Jesus e pela capacitação providenciada pelo Espírito Santo. A lente através da qual olho para mim mesma, me relaciono comigo mesma, é a perspectiva de Deus, não a minha, nem a dos outros acerca de mim. E como é que Ele me vê? Deus vê-me como filha (João 1.12), como amiga de Cristo (João 15:15), como justificada (Rom. 5:1), como pertencendo a Ele (1 Cor. 6:20), como estabelecida, ungida e selada por Ele (2 Cor. 1:21-22), como cidadã dos céus (Fil. 3:20), como templo da Sua própria habitação (1 Cor. 3:16), como ministra de reconciliação (2 Cor. 5:17-20)…entre muitas outras facetas que me fazem ser uma pessoa aceite, segura e com significado em Deus.
A vida numa palavra? Relacionamentos – imersos e fundamentados no amor de Deus! O Deus relacional que nos criou e nos possibilita viver como o ser humano verdadeiro que ele planeou sermos, através do que Jesus fez e o Espírito Santo continua a fazer, almeja que nos relacionemos com Ele, com os outros e connosco mesmos, e até com a Sua restante criação, em Amor. Este calibre de vivência manifesta-se num bem-estar e relacionamentos correctos que Deus sonhou para toda a Sua criação.